A recente história da Recuperação Judicial do Produtor Rural

Priscila das Neves Crusco
Advogada do Escritório Marcos Martins Advogados

Aos 28 dias do mês de agosto do ano de 2015, uma inovação estava prestes a ocorrer no âmbito da Lei 11.101/2005, já que nascia ali, uma bem sucedida história de pedido de Recuperação Judicial, a do Produtor Rural, onde eram litisconsortes José Pupin Agropecuária e Vera Lúcia Camargo Pupin, Armazéns Gerais Marabá Ltda., Marabá Agroindustrial e Nutrição Animal Ltda., JPupin Indústira de Óleos Ltda., JPupin Reflorestamento Ltda., Marabá Construções Ltda. e Cotton Brasil Agricultura Ltda.

Diz-se que ali foi o berço da novidade, pois o Juízo que recebeu o pedido, de forma nada conservadora, deferiu o pedido de Recuperação Judicial do Grupo J. Pupin, incluídos neste os Produtores Rurais requerentes dos benefícios da lei, sob o argumento de que “José e Vera Pupin eram empresários individuais rurais há décadas” (sic), restando sob sua ótica, cumprido o requisito do artigo 48 da Lei 11.101/2005[1], que preconiza:

Art. 48. Poderá requerer recuperação judicial o devedor que, no momento do pedido, exerça regularmente suas atividades há mais de 2 (dois) anos (…).

Tal entendimento encontrou a primeira barreira junto ao Tribunal de Justiça do Mato Grosso, que nos autos do Agravo de Instrumento proposto pelo Banco Votorantim e endossado por todos os demais bancos credores listados naqueles autos, cujos contratos foram celebrados ou garantidos pelos Agravados José e Vera, determinou a exclusão dos empresários rurais, fundamentado no argumento da imprescindibilidade de que estes ostentassem a condição de empresários, ou seja, com inscrição no órgão competente pelo prazo exigido por lei, o que não era o caso dos Agravados, uma vez que suas inscrições na Junta Comercial datavam de 20 de agosto de 2015 e 24 de agosto de 2015, respectivamente.

Assim, nos autos do processo nº 3067-12.2015.811.0051, ainda em trâmite perante a 1ª Vara Cível da Comarca de Campo Verde, permanecem em Recuperação Judicial as empresas Armazéns Gerais Marabá Ltda., Marabá Agroindustrial e Nutrição Animal Ltda., JPupin Indústria de Óleos Ltda., JPupin Reflorestamento Ltda., Marabá Construções Ltda. e Cotton Brasil Agricultura Ltda, excluídos os produtores rurais.

Amparados na mesma interpretação daquele Tribunal, que os excluiu da Recuperação Judicial nº 3067-12.2015.811.0051, que fundou-se apenas na questão temporal quanto a inscrição dos Produtores Rurais na Junta Comercial, no mês de setembro do ano de 2017, ou seja, mais de 2 (dois) anos após sua inscrição no regime empresarial, requereram José Pupin Agropecuária e Vera Lúcia Camargo Pupin sua própria Recuperação Judicial, distribuída à 1ª Vara Cível da Comarca de Campo Verde, sob o nº 7612-57.2017.811.0051.

Como consequência lógica da cessação do entrave acima narrado, aos 10 dias de outubro do ano de 2017, foi deferido o processamento da Recuperação Judicial, não sem antes haver o Juízo determinado a realização de perícia prévia sobre a documentação que instruiu a inicial, o que representa mais uma inovação na aplicação da Lei de Recuperações e Falência, ainda em vigor.

Deferido o processamento, eis que nova batalha foi iniciada, já que os credores, bancos em sua maioria, passaram a questionar a sujeição de seus créditos aos efeitos daquela Recuperação Judicial, isto porque tais obrigações teriam sido assumidas pelos Produtores Rurais antes de sua inscrição na Junta Comercial, ou seja, quando ainda não detinham a condição de “empresário regular”.

Ressalte-se que, o Juízo de 1º Grau, em sua decisão aplicou a regra do artigo 49 da Lei 11.101/2005[2] a todos os créditos, independentemente da data de sua constituição, desde que existentes na data da distribuição do pedido de recuperação judicial, determinando a exclusão apenas dos créditos reconhecidamente extraconcursais nos termos da mesma Lei.

Mais uma vez, os credores insatisfeitos com o decisum supra, socorreram-se dos meios legais e de forma diversa do Magistrado de 1º grau, entendeu o Tribunal de Justiça do Mato Grosso, nos autos do Agravo de Instrumento nº 1012637-90.2017.8.11.0000, não estarem sujeitos aos efeitos da Recuperação Judicial os créditos constituídos antes da inscrição dos Produtores Rurais na Junta Comercial.

Em razão do quanto decidido nos autos daquele Agravo de Instrumento, sobreveio a interposição do Recurso Especial nº 1.800.032[3], no qual a maioria dos Ministros, acompanhando o voto divergente, deram provimento ao recurso, determinando a sujeição de todos os créditos aos efeitos da Recuperação Judicial, mesmo que celebrados antes da inscrição dos empresários, por entender que, além de inscritos, os produtores já exerciam suas atividades de forma regular, uma vez que o registro para esses empresários é facultativa, não implicando sua ausência no eventual desenvolvimento irregular das atividades anteriormente praticadas pelos produtores rurais.

“Desse modo, o empreendedor rural, inscrito ou não, está sempre em situação regular; não existe situação irregular para este, mesmo ao exercer atividade econômica agrícola antes de sua inscrição, por ser esta facultativa. Por isso, se exerce atividade de produção de bens agrícolas, esteja inscrito ou não, estará em situação regular, justamente porque poderia se inscrever ou não. O que muda, então, com a inscrição do produtor rural? Somente o regime jurídico ao qual estará vinculado: o regime do próprio Código Civil, enquanto não inscrito; ou o regime empresarial, após o registro.

Tal assertiva restou brilhantemente traçada no voto vencedor do Eminente Ministro Raul Araújo, sendo de rigor a transcrição de alguns trechos desse importante voto:

Assim, os efeitos decorrentes da inscrição são distintos para as duas espécies de empresário: o sujeito a registro e o não sujeito a registro. Para o empreendedor rural, o registro, por ser facultativo, tem o efeito constitutivo de equipará-lo, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro, sendo tal efeito apto a retroagir (ex tunc), pois a condição regular de empresário já existia antes mesmo do registro. Já para o empresário comum, o registro, por ser obrigatório, somente pode operar efeitos prospectivos, ex nunc, pois apenas com o registro é que ingressa na regularidade e se constitui efetivamente, validamente, empresário. (…)

Aplicando-se a norma acima ao produtor rural, tem-se que, após obter o registro e passar ao regime empresarial, fazendo jus a tratamento diferenciado, simplificado e favorecido quanto à inscrição e aos efeitos desta decorrentes (CC, arts. 970 e 971), obtém condição de procedibilidade para requerer recuperação judicial bastando que comprove, no momento do pedido de recuperação, que explora regularmente a atividade rural há mais de 2 (dois) anos. Pode, portanto, computar, para efeito de perfazer os mais de dois anos exigidos por lei, aquele período anterior ao registro, quando exercia regularmente sua atividade rural sob o regime do Código Civil. Note-se que, aqui, o exercício regular de suas atividades comporta o cômputo do período anterior ao registro, pois, como se viu, tratava-se, mesmo então, de exercício regular da atividade. (…)

Afinal, o citado art. 48 exige, como condição para o pedido de recuperação judicial, apenas que o empresário exerça sua atividade de forma regular pelo período mínimo de mais de 2 (dois) anos. E sucede que, mesmo sem o registro, mesmo antes da inscrição, o produtor rural, se empreendia, já exercia regularmente sua atividade profissional organizada para a produção de bens e serviços, ou seja, já era empresário regular, embora sob o regime civil.

Prosseguindo… Como o empresário rural, cuja inscrição é facultativa, está sempre em situação regular, mesmo antes do registro, fazendo jus a tratamento diferenciado, simplificado e favorecido quanto à inscrição e aos efeitos desta decorrentes, tem-se que, após a inscrição do produtor rural, a lei não distingue o regime jurídico aplicável às obrigações anteriores ou posteriores à inscrição do empresário rural que vem a pedir recuperação judicial. Ao pedir recuperação judicial, também ficam abrangidas aquelas obrigações e dívidas anteriormente por ele contraídas e ainda não adimplidas”.

Assim, tem-se agora que o produtor rural inscrito na Junta Comercial que consiga comprovar o exercício de suas atividades por mais de 2 (dois) anos, poderá ser beneficiado com o pedido de Recuperação Judicial, que tem por escopo a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica, sujeitando-se a essa todos os créditos constituídos antes ou depois de alçar a condição de empresário, uma vez que decorreram do exercício regular de suas atividades.

E, num país onde o agronegócio é reconhecidamente um dos vetores do crescimento econômico, a relevância desta decisão é histórica, devendo ser reconhecido nesse precedente um poderoso elemento de retomada do crescimento.

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[1] BRASIL. Lei nº 11.101. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm. Acesso em: 20 fev. 2020. 

[2] Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.

[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (2. Turma). Recurso Especial 1.800.032 – MT. Recurso Especial. Civil e Empresarial. Empresário Rural e Recuperação Judicial. Regularidade do Exercício da atividade rural anterior ao registro do empreendedor (Código Civil, Arts. 966, 967, 968, 970 E 971). Efeitos ex tunc da inscrição do produtor rural. Pedido de recuperação judicial (lei 11.101/2005, art. 48). Cômputo do período de exercício da atividade rural anterior ao registro. Possibilidade. Recurso especial provido. Recorrente: Jose Pupin Agropecuaria – Em Recuperação Judicial e Vera Lucia Camargo Pupin – Em Recuperação Judicial. Recorrido: Banco do Brasil SA. Relatora: Ministro Marco Buzzi, 05 de novembro de 2019. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1832496&num_registro=201900504985&data=20200210&formato=PDF. Acesso em: 20 fev. 2020.

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