Jayme Petra de Mello Neto
Advogado do Escritório Marcos Martins Advogados
A recente publicação da Medida Provisória nº 881, em 30 de abril de 2019, por certo trouxe a baila uma série de questões que antes eram debatidas e discutidas apenas em âmbito dogmático e que, como são peculiares, tendem a suscitar paixões e opiniões divergentes.
Chamada de “Estatuto da Liberdade Econômica”, a Medida Provisória busca evidenciar princípios que já eram consagrados no Sistema Jurídico Brasileiro em diversos diplomas legais esparsos, não consolidados ou que, estando em sede constitucional, acabavam por “perder” no embate dos freios e contrapesos com outros princípios. O certo é que a medida não introduziu novos princípios, apenas reafirmou os existentes e, a partir disto, força com que eles sejam revisitados por todos os operadores do Direito, desde a Administração Pública Direta, Indireta e Fundacional, o Judiciário e também aos particulares nas suas relações diárias.
A Medida Provisória não revogou Leis e Princípios Setoriais de outros ramos do Direito. Apenas fez um “recall” de sua relevância para as diversas manifestações jurídicas das relações econômicas.
Inobstante não ter inovado em termos principiológicos, a Medida Provisória fez incisões pontuais em normas jurídicas positivas – os textos de lei – disciplinando-os de maneira mais incisiva de acordo com os fundamentos políticos-ideológicos que inspiraram a sua edição.
Interessa, neste momento, analisar uma destas incisões pontuais: a “introdução” da sociedade limitada unipessoal. O tema não é novo. Em tempos recentes, uma alteração na Lei nº 8.906/94 – Estatuto da Advocacia e da OAB – já tinha assentado a figura com a “Sociedade Unipessoal de Advocacia”. Para este artigo, deixa-se de lado a abordagem das subsidiárias integrais, existentes no âmbito das sociedades por ações, que têm natureza não contratual.
A unipessoalidade formadora de pessoa jurídica, com separação patrimonial entre seu instituidor e o estabelecimento também já se encontrava presente no nosso Sistema Jurídico. A EIRELI, empresa individual de responsabilidade limitada – introduzida no Código Civil em 2011, é a pessoa jurídica empresarial por excelência, capaz de evidenciar a separação entre estabelecimento e patrimônio particular do instituidor.
O grande problema referente à EIRELI sempre foi relacionado ao piso de constituição para o capital empresarial. Sem qualquer razão específica, foi determinado um valor mínimo de 100 (cem) salários, talvez para evidenciar uma capacidade econômica e afastar a possibilidade de confusão patrimonial. Não que este seja um critério autossuficiente. Mas é um critério, ainda assim.
Outros pontos de configuração da EIRELI também causavam certo embaraço: a discussão acerca da possibilidade de instituição de múltiplas EIRELI para um único instituidor pessoa física; a EIRELI aplicável aos objetos das sociedades simples – questão que veio resolvida por meio de repetidas decisões judiciais etc.
Inobstante a existência destas mazelas da configuração legal da EIRELI no Código Civil, a Codificação é absolutamente correta quando separou a pessoa jurídica instituída por ato unipessoal, das sociedades, formas essencialmente associativas.
A sociedade, independentemente de sua funcionalidade, se simples ou empresária, é um negócio jurídico e como tal pressupõe a existência de duas vontades, em relação de enantiomorfismo ou mesmo de aquiralidade, mas sempre existindo uma pluralidade de manifestações para conferir qualquer efeito jurídico.
Quando o ato instituidor prescinde de pluralidade ou mesmo de bilateralidade para a sua formação ele é, em sentido estrito um ato jurídico e não um negócio jurídico. Portanto, dada que a unipessoalidade formativa de pessoa jurídica não se faz num ambiente de pluralidade de vontades, não é conceitualmente compatível a designação de sociedade para o ato jurídico lícito (Código Civil, artigo 185) de instituição.
Portanto, de acordo com a melhor Dogmática, não é possível se falar em sociedade unipessoal, pois se estaria violando o cerne do conceito de sociedade.
No entanto, as duas figuras – sociedade unipessoal de advocacia e, agora, a sociedade limitada unipessoal – existem por força de Lei. E é preciso estudá-las para que se tornem eficazes e não venham a incidir no típico caso nacional das leis que não pegam.
A alteração promovida pela Medida Provisória foi bastante singela, levando à introdução da nova figura. Foi introduzido o parágrafo único no artigo 1.052, do Código Civil, que prevê:
- Art. 1.052. Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social.
- Parágrafo único. A sociedade limitada pode ser constituída por uma ou mais pessoas, hipótese em que se aplicarão ao documento de constituição do sócio único, no que couber, as disposições sobre o contrato social.
O artigo 1.052 é o artigo inaugural da sociedade limitada, primeira figura societária empresarial personificada no Código Civil. O Código, por sua vez, criou um sistema de estruturação intelectiva do qual as sociedades possuem um arcabouço geral nas sociedades simples, que é tomado como vetor interpretativo nas omissões das demais figuras societárias típicas. A seguir, regula a especificidade na Sociedade em Nome Coletivo, na Sociedade em Comandita Simples, na Sociedade Limitada, na Sociedade Anônima (merecendo crítica por não ser a única forma existente de sociedade por ações) e por fim na Sociedade Cooperativa.
Diante deste posicionamento, trazido num contexto de especificidade, a primeira pergunta que se faz é: seria cabível a unipessoalidade para as demais formas de sociedade? Especialmente, poderia haver extensão desta forma à Sociedade Simples por interpretação extensiva?
A Sociedade Simples é um importantíssimo fator de produção econômica na realidade brasileira. Boa parte dos serviços, especialmente aqueles de alta tecnicidade, são prestados por meio de sociedades simples, como as sociedades de advogados, de médicos, de engenheiros etc. Nestes casos é até mais comum existirem problemas mais frequentes de impedimento de associação entre pares para formar sociedades. Portanto, seria plenamente razoável que a unipessoalidade pudesse alcançar este tipo societário. Mas, dada a topologia legal, será necessária que a interpretação extensiva venha a possibilitar esta aplicação. A ver o que o futuro reserva!
Outro ponto bastante peculiar que a singeleza da Medida Provisória não alcançou está em disciplinar a questão da dissolução societária. De acordo com o artigo 1.033, IV, do Código Civil, que não foi expressamente revogado pela Medida Provisória, a falta de pluralidade não recomposta em 180 dias é causa de dissolução das sociedades. Antes da vigência da medida, diante da maior tecnicidade da EIRELI colocada como ato jurídico e não como negócio jurídico, havia a necessidade de ser feita a conversão da sociedade limitada para a EIRELI.
Atualmente, dada a redação da Medida Provisória, é possível se indagar duas questões referentes à dissolução: (I) o artigo 1.033, IV foi revogado ou derrogado pela MP, a despeito da ausência de texto específico?; e, (II) há a necessidade de algum arquivamento de ato societário para reafirmar a unipessoalidade nos casos em que a unipessoalidade ocorreu antes do início da vigência da Medida Provisória?
Não existem respostas prontas para estas questões. A minha leitura pessoal prefere a linha da derrogação do artigo 1.033, IV com relação à sociedade limitada apenas (ou mesmo com relação à simples se a interpretação extensiva for alcançada), mantendo-se em vigor para os demais tipos societários. Esta é uma leitura forçada a partir da introdução imprópria, já que o vínculo negocial se rompe (dissolve) pela falta de pluralidade, demandando que seja dada, agora, uma “tolerância” lógica – ou ilógica, porém imposta.
Já com relação à segunda questão, a resposta é mais complexa e demanda separar as sociedades em 2 grupos: as que já tinham ultrapassado o prazo de 180 dias e as que estavam neste interregno. Para as primeiras, a boa lógica impunha considerá-las dissolvidas (lembrando que a dissolução é somente uma fase no fenômeno de desaparecimento da pessoa jurídica, que envolve ainda a liquidação e a extinção da personalidade). Mas mesmo rompido o vínculo, é inegável que a pessoa jurídica continua a existir. Portanto, exigir um ato ratificador, agora que o vínculo negocial perdeu a relevância, seria redundante e, até mesmo, atécnico.
Para o segundo grupo, das sociedades que se encontravam no interregno do intervalo de dissolução, há que se entender que seria até mesmo ilegal a exigência de ratificação da continuidade por unipessoalidade.
Mas, estes pontos ainda precisarão de maior debate até sua solução estar estabilizada e pacificada.
É ainda muito interessante se questionar o que aconteceria com as sociedades que se utilizaram da unipessoalidade durante o prazo de vigência da Medida Provisória, ou caso esta venha a ser afastada pelo Congresso Nacional, não a convertendo em Lei. Aqui, as questões e implicações poderão surgir de maneira exponencial, dada a dinâmica das relações jurídicas que uma pessoa jurídica entabula ao longo de um dia normal de operação. Problemas que passarão pela legitimidade e validade dos negócios por ela realizado, segregação patrimonial do estabelecimento com o patrimônio pessoal do sócio (que é um dos princípios reafirmados pela Medida Provisória) para efeitos de responsabilidade civil, trabalhista ou tributária, bem como uma série de outros que somente a realidade dos negócios poderá revelar com o tempo.
Inobstante todas as questões e críticas, a figura da sociedade limitada unipessoal agora é uma realidade jurídica e o escritório Marcos Martins está constantemente aprimorando seu corpo profissional para utilizar esta nova tipologia legal em proveito de seus clientes, prestando um serviço de excelência em advocacia estratégica empresarial.
[rock-convert-pdf id=”12631″]