ITCMD: O ESTADO DE SÃO PAULO QUEBRA SIGILO FISCAL AO UTILIZAR INFORMAÇÃO DA RECEITA FEDERAL

Angelo Francisco Barrionuevo Ambrizzi

Advogado do Escritório Marcos Martins Advogados 

Recentemente inúmeros contribuintes Paulistas receberam intimações da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo (“Sefaz”) para prestar esclarecimentos sobre doações enviadas, via Declaração de Imposto de Renda da Pessoa Física – IRPF, à Receita Federal do Brasil.

Tais doações, aparentemente segundo a Sefaz, estavam desacompanhadas do recolhimento do Imposto de Transmissão Causa Mortis ou Doação – ITCMD.

Como sabido, a Constituição Federal define que a competência para a instituição e cobrança do ITCMD é Estadual, sendo que o tributo é cobrado nas seguintes situações: heranças, legados e doações. Para o Estado de São Paulo a alíquota é de 4%.

Diante disso, alguns questionamentos são importantes:

1 – Como o Estado de São Paulo obteve informações constantes da Declaração de Imposto de Renda da Pessoa Física – IRPF?
2 – A utilização destas informações é legal e constitucional?

Quanto à obtenção e cruzamento das informações, os mesmos são feitos da seguinte forma: a Receita Federal do Brasil fornece as informações de doações contidas na Declaração de Imposto de Renda da Pessoa Física – IRPF para o Fisco Estadual, que por sua vez analisa se em cada operação de doação fornecida havia ITCMD a recolher.

Identificada suposta irregularidade, o Fisco Estadual intima os contribuintes a esclarecer a razão da ausência de recolhimento ou justificar o porquê da ausência do pagamento do ITCMD.

Tal procedimento foi alinhavado por meio de convênio firmado pelos órgãos Federal e Estadual, o que gerou a possibilidade do cruzamento de informações com a finalidade de identificar doações desacompanhadas do devido recolhimento do ITCMD.

Respondida a primeira pergunta, vamos à resposta da segunda indagação.

Com relação a validade da utilização das informações do Fisco Estadual acredita-se haver incompatibilidade com o ordenamento jurídico, principalmente com relação à garantia constitucional do sigilo fiscal.

Equivale dizer que as informações de um contribuinte declaradas à Receita Federal estão protegidas pela garantia constitucional do sigilo fiscal e este órgão federal não pode fornecer tais informações a terceiros, a menos que exista decisão judicial autorizando tal mister.

Já existe decisão por parte do Plenário do Supremo Tribunal Federal – STF proferida em dezembro de 2010 no julgamento do Recurso Extraordinário RE nº 389.808 afastando a possibilidade de o Fisco Federal realizar, por conta própria, a quebra do sigilo bancário, sendo que tal acesso à informação somente pode ocorrer se houver autorização judicial.

A Suprema Corte ao proteger o sigilo bancário invocou precipuamente a inviolabilidade e proteção à vida privada, em que ao indivíduo é garantido a proteção as informações privadas referentes aos seus negócios, afastando assim o conhecimento destas informações de terceiros.

Tal assertiva permite concluir que, embora o julgamento do STF tenha julgado a questão do sigilo bancário, a proteção constitucional se aplica claramente ao sigilo fiscal, pois se os dados envolvendo a vida financeira do indivíduo estão protegidos, com mais ou pela mesma razão, se aplica também ao sigilo fiscal.

A grande questão que se traz à reflexão é se os dados do contribuinte disponibilizados ao Fisco Federal poderão ser apropriados por outras esferas de competência, ou seja, pelo Fisco Estadual ou Municipal.

O Sr. Ministro Ricardo Lewandowski do Supremo Tribunal Federal – STF recentemente decidiu matéria similar ao julgar constitucional a quebra do sigilo fiscal feita por órgão competente, quem seja, o Tribunal Superior Eleitoral – TSE ao requisitar à Secretaria da Receita Federal. Neste pensar, em sentido contrário restaria inconstitucional se fosse requerida por órgão incompetente (Ministério Público) como no caso analisado.

Restou clara na decisão a lisura do procedimento, isto porque feito mediante ordem judicial (Tribunal Superior Eleitoral). Veja o teor da decisão do STF:

RE 744036 / SC – SANTA CATARINA
RECURSO EXTRAORDINÁRIO
Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI
Publicação: DJe-081 DIVULG 29/04/2014 PUBLIC 30/04/2014
RECTE.(S) : MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL
RECDO.(A/S) : J J M A A
[…]
2. Este Tribunal já decidiu pela imprescindibilidade da autorização judicial para a quebra do sigilo fiscal, a qual não seria suprida mediante convênio firmado entre a Justiça Eleitoral e a Secretaria da Receita Federal. Agravo regimental não provido.”
No RE, fundado no art. 102, III, a, da Constituição, alegou-se ofensa ao artigo 5º, X, da mesma Carta, resumindo a questão da seguinte forma: “Cinge-se a questão controvertida em definir-se o Tribunal Superior Eleitoral deu correta aplicação ao art. 5º, inciso X, da Constituição Federal, quando assentou ser ilícita – por violação ao sigilo fiscal – a prova consubstanciada em dados relativos aos rendimentos de contribuinte, em virtude de terem sido requeridos diretamente pelo Tribunal Superior Eleitoral à Secretaria da Receita Federal, mediante convênio firmado para mútua cooperação. (…)
Não se pode olvidar o percurso de tais informações. São elas obtidas pela própria Justiça Eleitoral, que tem poderes para quebrar o sigilo fiscal dos doadores de campanha, e repassadas, pela Justiça Eleitoral, ao Ministério Público Eleitoral.
O Ministério Público Eleitoral, por via de consequência, não requisita informações à Receita Federal, nem procede à quebra do sigilo fiscal de doadores de campanha.
Quem o faz é quem tem poderes, reconhecidos por essa Suprema Corte, para fazê-lo, qual seja, o próprio Poder Judiciário.” (fls. 180-196, grifos no original).
A pretensão recursal não merece acolhida. Indispensável a análise do acervo probatório dos autos para se verificar, no caso, se os dados sigilosos, utilizados pelo Parquet – antes mesmo da quebra de sigilo autorizada pelo juiz eleitoral – foram obtidos diretamente pelo Ministério Público Eleitoral, junto à Receita Federal do Brasil ou se constavam das informações disponibilizadas, em mídia eletrônica, pelo Tribunal Superior Eleitoral, com fundamento na Portaria Conjunta SRF/TSE nº 74, circunstância que torna inviável o recurso nos termos da Súmula 279 do STF.
Esclareça-se, por oportuno, que, ao contrário do alegado pelo recorrente, a matéria discutida nestes autos é diversa da do ARE 05/11/2014 que teve sua repercussão geral reconhecida por esta Corte, e trata de prazo para o ajuizamento de representação por doação superior ao limite legal.
Isso posto, nego seguimento ao recurso (CPC, art. 557, caput). Publique-se. Brasília, 25 de abril de 2014. Ministro RICARDO
LEWANDOWSKI – Relator –
(STF – RE: 744036 SC, Relator: Min. Ricardo Lewandowski, Data de Julgamento: 25/04/2014, Data de Publicação: DJe-081 DIVULG 29/04/2014 PUBLIC 30/04/2014).

Feitas estas considerações resta claro que o entendimento do Supremo é no sentido de que a quebra do sigilo fiscal é permitida desde que com prévia autorização judicial.

O Ministro do Tribunal Superior Eleitoral – TSE, Sr. Gilson Dipp proferiu decisão no mesmo sentido, segue:

DECISÃO
Trata-se de agravo de instrumento interposto por Kennedy de Souza Trindade de decisão que inadmitiu recurso especial fundado no artigo 121, § 4º, I e II, da Constituição Federal e no artigo 276, I, a e b, do Código Eleitoral. O acórdão do Tribunal Regional Eleitoral de Goiás está assim ementado, verbis (fl. 145):
REPRESENTAÇÃO ELEITORAL BASEADA EM DIRPF ORIGINAL. DOAÇÃO POR PESSOA FÍSICA ACIMA DO LIMITE LEGAL. INIDONEIDADE DA DIRPF RETIFICADORA. PRELIMINARES AFASTADAS.
1) Rejeição das preliminares de ilicitude da prova (informações fiscais requisitadas pelo MPE), na forma da legislação de regência (CF/88, art. 5º, LVI e art. 129, VI; LC 75, art. 8º, II; Resolução TSE 22.250/2006, art. 14, § 4º, CPC, art. 332).
2) Configuração da infração do art. 23, § 1º, I da Lei 9.504/97 e ausência de causa de exclusão da responsabilidade.
3) Reconhecimento dos efeitos probatórios da DIRPF original.
4) Afastamento, no âmbito do Direito Eleitoral, dos efeitos da DIRPF retificadora, apresentada pelo doador pessoa física à administração tributária após a doação, a apresentação da representação e a notificação judicial para a respectiva defesa, desacompanhada de prova documental dos atos jurídicos que, alegadamente, respaldariam a retificação.
5) Cominação no mínimo legal da pena pecuniária do § 3º do art. 23 da Lei 9.504/97, diante da ausência de circunstâncias legais e judiciais de majoração.
A decisão agravada fundamenta-se na ausência de condições de admissibilidade do recurso especial. A uma, porque não haveria falar em nulidade do feito por ilicitude da prova carreada aos autos pelo Ministério Público Eleitoral sem autorização judicial, visto que o suposto vício não teria sido arguido durante a fase instrutória, assim como não constitui prova única utilizada pelo Regional. A duas, uma vez que a análise da ocorrência de violação ao princípio da boa-fé objetiva demandaria o reexame de prova, inviável nesta instância especial.
O agravante alega violação aos artigos 5º, X e LVI, e 129, VIII, da
Constituição Federal; artigo 8º, II, da Lei Complementar nº 73/93; artigo 198, § 1º, II, da Lei nº 5.172/66 (CTN); artigo 14, § 4º, da Res. 22.250/2006; e artigo 332 da Lei nº 5.869/73 (CPC), sob o argumento de que seria ilícita a quebra do sigilo fiscal por ordem do Ministério Público sem autorização prévia do Poder Judiciário, gerando nulidade de todas as provas colhidas no feito, em observância à Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada; aos artigos 113, 167 e 168, parágrafo único, do Código Civil e ao artigo 333, I, do Código de Processo Civil, já que o acórdão regional, ao analisar a retificadora da sua Declaração de Imposto de Renda, teria presumido, sem provas suficientes, a prática de um negócio jurídico simulado.
[…]
Decido.
Tendo em vista as razões do agravo, dou-lhe provimento e passo de imediato à análise do recurso especial, porquanto devidamente contraarrazoado (artigo 36, § 4º, do Regimento Interno do Tribunal Superior Eleitoral).
Assiste razão ao recorrente.
De fato, é considerada prova ilícita aquela colhida mediante quebra do sigilo fiscal sem a autorização judicial respectiva.
Destaco da pacífica jurisprudência desta Corte quanto ao tema, dentre outros, precedente da relatoria do eminente Ministro MARCELO RIBEIRO (AgR-REspe nº 7875839-60/DF), julgado na sessão de 3.2.2011:
AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. DOAÇÃO DE RECURSOS DE CAMPANHA. QUEBRA DE SIGILO FISCAL. CONVÊNIO FIRMADO ENTRE O TSE E A SECRETARIA DA RECEITA FEDERAL. PRESERVAÇÃO DO DIREITO À PRIVACIDADE. FUNDAMENTO INATACADO. SÚMULA Nº 182/STJ. DESPROVIMENTO.
1. Constitui prova ilícita aquela colhida mediante a quebra do sigilo
fiscal do doador, sem autorização judicial. Precedente: AgR-REspe nº 82.404/RJ, rel. Min. Arnaldo Versiani, Sessão de 4.11.2010.
[…]
4. Mesmo com supedâneo na Portaria Conjunta SRF/TSE nº 74/2006, o direito à privacidade, nele se incluindo os sigilos fiscal e bancário, previsto no art. 5º, X, da Constituição Federal, deve ser preservado, mediante a observância do procedimento acima descrito.
5. Agravo regimental desprovido. (grifo nosso)
[…]
Brasília, 14 de fevereiro de 2012.
MINISTRO GILSON DIPP
RELATOR
(TSE – AG nº 8984, Relator: Min. Gilson Dipp, Data de Julgamento: 14/02/2012, Data de Publicação: Diário de justiça eletrônico, Data: 23/02/2012, Página 16 – 17)

O procedimento do Fisco Paulista em requerer e utilizar informações que o contribuinte, por obrigação legal, fornece à Receita Federal afronta de maneira brutal a proteção constitucional do sigilo fiscal.

O contribuinte que receber qualquer intimação relacionada ao tema não pode se manter inerte, deve se opor, pelos meios fornecidos pelo poder judiciário, contra esta dura afronta das garantias Constitucional.

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