A flexibilização do tratamento do crédito trabalhista na Recuperação Judicial

Fernando Luiz Tegge Sartori
Advogado do Escritório Marcos Martins Advogados

O processo de recuperação judicial tem se mostrado cada vez mais como uma opção viável às empresas que desejam reestruturar as suas dívidas e seguir atuando no mercado.

Nos mais de 15 anos de vigência da lei 11.101/2005, a pratica vem mostrando ao mercado que a referida alternativa tem se tornado cada vez mais segura aos que dela se socorrem, considerando a criatividade dos profissionais inseridos nesse contexto, bem como as interpretações doutrinárias e jurisprudenciais que evoluíram ao longo do tempo.

A verdade, é que o processo de recuperação judicial não poderia ser analisado de forma isolada, com análise de cumprimento de cláusulas específicas, ou pela análise de cumprimento de artigos isolados ou mesmo sob a perspectiva de um interessado específico.

A evolução da forma de interpretar a legislação recuperacional vem em conjunto com uma maior especialização de advogados militantes na área, dos juízes, administradores judiciais e representantes do ministério público. A recuperação judicial já não é interpretada apenas segundo à forma da lei 11.101/2005, mas sim como um “sistema recuperacional”.

Isso porque, a legislação já não é analisada exclusivamente segundo o seu conteúdo literal, mas passa a ser analisada segundo os seus princípios norteadores e objetivo da legislação, de forma que muitos dos seus regramentos, ao longo do tempo, foram relativizados de forma a alcançar o objetivo maior da lei – a recuperação da sociedade empresária.

Alguns desses exemplos de relativização da norma recuperacional já são de conhecimento geral e com ampla aplicação na jurisprudência. Umas das normas cuja relativização é mais comum, é a aplicação do prazo de suspensão das ações e execuções em face do devedor, a que se refere o art. 6º, §4º da lei 11.101/2005[1], segundo o qual, referido prazo de 180 dias é improrrogável.

Em que pese a aparente rigidez da redação do supramencionado artigo, a prática demonstra que a norma foi relativizada e que é admitida a prorrogação do prazo do art. 6º, §4º da LRF, desde que o devedor não tenha concorrido para o retardamento do regular curso do processo. Considerando os expressivos valores envolvidos em um processo de recuperação judiciais e a pluralidade de credores e demais interessados no processo, é comum que as serventias dos juízos não acompanhem a velocidade do processo que foi idealizada pelo legislador.

Outro caso relevante de relativização da legislação recuperacional é a redação do artigo 57[2], segundo o qual, para a concessão do pedido de recuperação judicial, o devedor deve apresentar certidões negativas débitos tributários.

Apesar da especificidade da cláusula, ela tem se mostrado prescindível quando da prolação da sentença de homologação do plano de recuperação judicial e concessão da recuperação judicial, com entendimento consolidado na jurisprudência, inclusive no Superior Tribunal de Justiça[3].

Na hipótese, o que se verificou foi a existência de uma antinomia jurídica entre o que reza o artigo 57 da lei 11.101/2005, com a exigência da apresentação de certidão negativa de débitos e o princípio máximo do sistema recuperacional – o princípio da preservação da sociedade empresária, com os consequentes benefícios sociais e econômicos por ela gerados. No entanto, considerando o objetivo da legislação recuperacional, a jurisprudência consolidou o entendimento pela desnecessidade de cumprimento do quanto determinado no artigo 57 da LRF.

São diversos os exemplos da maleabilidade da legislação recuperacional quando posta a sua redação sob a luz dos seus objetivos e princípios norteadores.

No entanto, apesar de todas as discussões e interpretações da legislação que levaram à evolução do sistema recuperacional, um dos pontos que se mostrava como conservador e de difícil flexibilização, era o tratamento dado ao crédito trabalhista, crédito considerado como alimentar.

Por muito tempo não se admitia qualquer interpretação que não fosse a literalidade da norma contida no caput do art. 54 da lei 11.101/2005[4], para pagamento da integralidade do crédito devido ao credor trabalhista, ou a ele equiparado, no prazo de 1 ano, contados da homologação do Plano de Recuperação Judicial, ou inclusive com obrigação de pagamento em prazo inferior ao período de 1 ano, conforme a orientação contida no enunciado I do Grupo de Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo[5].

Por se tratar de uma verba considerada alimentar e pelo tratamento privilegiado que a própria lei confere aos créditos trabalhistas, a evolução negocial e a busca por soluções quanto à renegociação dessa dívida foi gradualmente sendo aplicada pelos especialistas militantes nesta área.

A evolução negocial passou por diversas tentativas de “furar” a rigidez da redação do artigo 54 da LRF, dentre as quais destaca-se a criação de subclasses, a estipulação de prazo superior ao estabelecido na legislação, a aplicação de deságio e a aplicação do artigo 83, I e VI, alínea c), ambos da lei 11.101/2005[6].

Em muitos dos casos os Plano de Recuperação Judicial tiveram as referidas cláusulas anuladas, seja em atos de controle de legalidade pelos juízos nos quais tramitavam os procedimentos recuperacionais, seja em julgamentos de recursos em tribunais superiores. Esporadicamente referidas propostas eram aprovadas e homologadas, sem que fosse registrada a interposição de recursos.

Nesse prisma, muitas das empresas que buscaram a reestruturação da sua dívida por intermédio da recuperação judicial não obtiveram êxito em superar a crise, muito em razão da impossibilidade de se negociar a condição de pagamento dos créditos trabalhistas. Outras tantas empresas nem sequer optaram pela recuperação judicial, sabendo do posicionamento rígido a legislação.

De toda a sorte, referido cenário de restrição negocial vem se modificando, especialmente em razão da conjugação dos artigos da legislação em conjunto com seus princípios norteadores. O fato é que a lei 11.101/2005 tem um objetivo claro[7] e que deve ser sempre considerado quando da análise das diversas controvérsias e negociações levadas ao poder judiciário.

São cada vez mais comuns as propostas de pagamento aos credores trabalhistas e que fogem do padrão rígido estabelecido pela legislação recuperacional, casos que inclusive foram homologados e cujos planos de recuperação judicial vêm sendo cumpridos.

Nessa linha de entendimento, recentemente o Superior Tribunal de Justiça se posicionou quanto a legalidade de cláusulas que estabelecem subclasses / patamares máximos para que o crédito trabalhista seja considerado como preferencial em relação aos demais credores, com a diferença sendo relacionada para pagamento nas mesmas condições dos créditos quirografários.

RECURSOS ESPECIAIS. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. DISCUSSÃO QUANTO À LEGALIDADE DE CLÁUSULA CONSTANTE DO PLANO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL APROVADO QUE ESTABELECE LIMITE DE VALOR PARA O TRATAMENTO PREFERENCIAL DO CRÉDITO TRABALHISTA, INSERIDO NESTE O RESULTANTE DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS, DESDE QUE DE TITULARIDADE DE ADVOGADO PESSOA FÍSICA. 1. CONTROLE JUDICIAL DE LEGALIDADE DO PLANO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL APROVADO PELA ASSEMBLEIA GERAL DE CREDORES. POSSIBILIDADE, EM TESE. 2. CRÉDITO DECORRENTE DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. NATUREZA ALIMENTAR, A ENSEJAR TRATAMENTO PREFERENCIAL EQUIPARADO AO CRÉDITO TRABALHISTA. TESE FIRMADA EM REPETITIVO. COMPREENSÃO QUE NÃO SE ALTERA EM VIRTUDE DE A DISCUSSÃO SE DAR NO BOJO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL; DE O TITULAR SER SOCIEDADE DE ADVOGADOS; OU DE SE TRATAR DE EXPRESSIVO VALOR. 3. ESTABELECIMENTO DE PATAMARES MÁXIMOS PARA QUE OS CRÉDITOS TRABALHISTAS E EQUIPARADOS TENHAM UM TRATAMENTO PREFERENCIAL, CONVERTENDO-SE, O QUE SOBEJAR DESSE LIMITE QUANTITATIVO, EM CRÉDITO QUIROGRAFÁRIO. LICITUDE DO PROCEDER. 4. RECURSOS ESPECIAIS IMPROVIDOS.[8]

No mesmo sentido, o Grupo de Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo emitiu novo enunciado quanto ao tema, indicando a possibilidade de aplicação da condição prevista no art. 83, I da lei 11.101/2005 (até então interpretada como de aplicação exclusiva nos processo de Falência) ao processo de recuperação judicial:

Enunciado XIII: Admite-se, no âmbito da recuperação judicial, a aplicação do limite de 150 salários mínimos, previsto no art. 83, I, da Lei nº 11.101/2005, que restringe o tratamento preferencial dos créditos de natureza trabalhista (ou a estes equiparados), desde que isto conste expressamente do plano de recuperação judicial e haja aprovação da respectiva classe, segundo o quórum estabelecido em lei.

Referido avanço do posicionamento jurisprudencial se mostra benéfico e representa uma evolução necessária ao sistema recuperacional, uma vez que demonstra verdadeiro equilíbrio entre os direitos e interesses dos envolvidos, para que o processo de recuperação judicial possa ser mais efetivo e seja possível o alcance do seu objetivo.

Assim, se referida condição estiver prevista no Plano de recuperação Judicial e for aprovada em assembleia, não há óbice na legislação para que a condição de pagamento seja implantada e cumprida pela empresa devedora.

O escritório Marcos Martins Advogados está sempre atento às discussões doutrinárias e jurisprudenciais de forma a sempre atender, da melhor forma, os seus clientes.

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[1] Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário. (…) § 4º Na recuperação judicial, a suspensão de que trata o caput deste artigo em hipótese nenhuma excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias contado do deferimento do processamento da recuperação, restabelecendo-se, após o decurso do prazo, o direito dos credores de iniciar ou continuar suas ações e execuções, independentemente de pronunciamento judicial.

[2] Art. 57. Após a juntada aos autos do plano aprovado pela assembléia-geral de credores ou decorrido o prazo previsto no art. 55 desta Lei sem objeção de credores, o devedor apresentará certidões negativas de débitos tributários nos termos dos arts. 151, 205, 206 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional.

[3] A exemplo do quanto reconhecido nos seguintes julgados: (i)BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (4. Turma). Recurso Especial nº 1.173.735 – RN (2010/0003787-4). Recorrentes e Recorridos: Petróleo Brasileiro S/A Petrobras e Engequip – Engenharia de Equipamentos Ltda. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão, 22 de abril de 2014.; e (ii)BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (2. Turma). AgRg no Agravo em Recurso Especial nº 543.830 – PE (2014/0165586-9). Recorrentes e Recorridos: Blanke Comércio de Pescados Ltda. e Fazenda Nacional. Relator: Ministro Herman Benjamin, 25 de agosto de 2015.

[4] Art. 54. O plano de recuperação judicial não poderá prever prazo superior a 1 (um) ano para pagamento dos créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes de trabalho vencidos até a data do pedido de recuperação judicial.

[5] O prazo de um ano para o pagamento de credores trabalhistas e de acidentes de trabalho, de que trata o artigo 54, caput, da Lei 11.101/05, conta-se da homologação do plano de recuperação judicial ou do término do prazo de suspensão de que trata o artigo 6º, parágrafo 4º, da Lei 11.101/05, independentemente de prorrogação, o que ocorrer primeiro.

[6] Art. 83. A classificação dos créditos na falência obedece à seguinte ordem: I – os créditos derivados da legislação do trabalho, limitados a 150 (cento e cinquenta) salários-mínimos por credor, e os decorrentes de acidentes de trabalho; (…) VI – créditos quirografários, a saber: (…) c) os saldos dos créditos derivados da legislação do trabalho que excederem o limite estabelecido no inciso I do caput deste artigo

[7] Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

[8]BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3. Turma). Recurso Especial nº 1.649.774 – SP (2017/0015850-3). Recorrentes e Recorridos: Inepar S.A. Indústria e Construções e outros e os mesmos. Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze, 12 de fevereiro de 2019.

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