Renegociações contratuais durante a pandemia e a nova realidade das relações comerciais

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Giulia Keese Montanhesi
Advogada do Escritório Marcos Martins Advogados

Em uma cultura empresarial em que cultivar contatos, fomentar conexões e expandir relações comerciais era o caminho do sucesso, o rompimento súbito das relações contratuais pareceu ser, a muitos empresários, a única medida frente a crise que se instalou no mundo, decorrente da Covid-19.

Diante da emergência sanitária, grande parte das empresas se viu surpreendida com a estagnação repentina da economia, mão de obra parada, mercados e clientela instáveis, baixa demanda, fluxo de caixa defasado, inadimplência de fornecedores, restrição de deslocamentos, fechamento de vias logísticas e rarefação de matérias primas.

Após o primeiro impacto da pandemia, onde verificamos rescisões repentinas dos contratos e inadimplementos obrigacionais expressivos de forma global, o ambiente empresarial passou a se ambientar às novas condições e, por consequência, buscar o restabelecimento do equilíbrio das relações como forma de superação da crise, reconstrução da confiabilidade e credibilidade no mercado e demonstração de boa-fé contratual para a retomada gradual dos negócios.

Além disso, viu-se um movimento dos especialistas e dos tribunais para utilização de diversas ferramentas próprias de resolução de contratos para sua revisão, com base no princípio da conservação dos contratos.

Portanto, como um incentivo a preservação das relações comerciais, apresentaremos a seguir teorias jurídicas que revelam oportunidades de reestabelecimento do equilíbrio negocial, de preservação de alianças, da confiança do mercado sobre o negócio e de adaptação ao “novo normal”, com o menor abalo possível nas relações contratuais.

Caso Fortuito e Força Maior

A base jurídica que está mais alinhada com a ideia da imprevisibilidade de eventos da natureza ou humanos inevitáveis é a ocorrência de caso fortuito ou força maior, nos termos do artigo 393 do Código Civil. Muito utilizada nos contratos atuais, a norma prevê que o devedor não responderá pelos prejuízos resultantes desses eventos se expressamente não se houver por eles responsabilizado no contrato.

A despeito da diferenciação terminológica destes conceitos ser muito debatida pelos especialistas, a visão doutrinária e jurisprudencial majoritária é de que epidemias e pandemias são eventos imprevisíveis, inevitáveis e constituem caso fortuito ou força maior para dar causa a revisão contratual. Assim, para a rediscussão das condições pré-estabelecidas, cabe a demonstração do nexo de causalidade entre o fato extraordinário e a adaptação desejada, isto é, comprovar a correlação da pandemia e a medida de reequilíbrio pretendida.

Nesse cenário de mudanças repentinas, a teoria é um aliado para discutir uma forma de atender as partes, sem a rescisão definitiva. Portanto, aconselhamos expor como os efeitos sociais e econômicos decorrentes da crise atual dificultam determinadas obrigações e reajustar a forma de cumprimento preservando, especialmente a saúde econômica e o bom relacionamento das partes.

A nova realidade indica que a maioria dos contratos buscarão comportar esta cláusula para disciplinar a renegociação contratual provocada por eventos adversos. Acreditamos e defendemos, aqui, a capacidade de utilizar essa cláusula para moldar a relação jurídica e comercial a diversos cenários excepcionais e extraordinários que se apresentem, sem o afastamento dos contratantes.

Teoria da imprevisão ou da onerosidade excessiva

Nesta hipótese, fatos novos e imprevisíveis que sobrecarreguem um lado da relação podem ser um motivo suficiente para ajustes em quantidade do produto, aumento ou diminuição de preços, alteração das condições de envio de mercadorias, durabilidade do contrato, ajustes nos serviços prestados, dentre outros.

A existência da teoria da onerosidade excessiva, também denominada teoria da imprevisão[1], busca realizar estas flexibilizações quando há desequilíbrio contratual entre as partes por fato novo, a fim de oportunizar a continuidade da relação jurídica, sendo, inclusive, muito utilizada em contratos de longa duração e prestações continuadas.

A teoria pressupõe que as partes tenham iniciado uma contratação em bases e condições iguais, porém, a proporcionalidade e equidade da relação tenha sido atingidas por fato novo imprevisível, de forma que devem ser corrigidas ou reestabelecidas para que o contrato consiga atingir seus propósitos.

A teoria se apoia na ideia de que a rescisão deve ser a última opção e deve ser cogitada, tão somente, quando inviável qualquer possibilidade de se cumprir o objetivo principal do contrato.

Exceção de contrato não cumprido ou exceção de inseguridade

A exceção de contrato não cumprido ou exceção de inseguridade[2] é a tese na qual, uma vez pactuados deveres proporcionais e específicos entre iguais, uma parte não pode exigir da outra o cumprimento de uma obrigação, sem cumprir com a própria.

A tese pode adquirir um efeito resolutivo, isto é, se nenhuma das partes cumprir com o que foi determinado, o negócio será extinto e resolvido. Entretanto, se for do interesse das partes, o não cumprimento espontâneo de ambas as partes nestas circunstâncias pode permitir que a exceção se torne uma ferramenta para renegociação, alteração e ajustamento dos compromissos de forma bilateral e equitativa, em prol da preservação do negócio e da força obrigatória dos contratos.

Boa-fé objetiva e a Lei da Liberdade Econômica

A boa-fé[3] sempre foi uma das bases do Civil Law e tomou substancial importância com a nova configuração das relações comerciais.

O princípio em sua condição objetiva[4] impõe aos contratantes a obrigação de agir honestamente e consoante padrões éticos normais, com transparência, lealdade e probidade, para possibilitar as partes alcançar os objetivos pretendidos com a contratação.

Nesse sentido, a boa-fé objetiva impõe obrigações acessórias as partes e, neste caso, a inflexibilidade e manutenção de um contrato evidentemente desigual e excessivamente oneroso a uma das partes pode vir a ser uma infringência deste princípio, já que a outra estaria se aproveitando deste desequilíbrio.

No mesmo sentido das demais teorias, dispõe a Lei da Liberdade Econômica, ao modificar o artigo 421-A, do Código Civil, que os “contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção”. O texto, além de reconhecer a relatividade da força obrigatória dos contratos[5], confirma sua mitigação em casos excepcionais, como o cenário vivenciado.

É importante salientar que, para a economia em geral e para a própria preservação das relações negociais, é imprescindível a manutenção do equilíbrio do momento originário dos contratos. Este artigo e as demais vontades da nova lei trazem esse desejo e buscam aumentar a força da autonomia privada e da revisão excepcional.

Função Social do Contrato

A teoria da função social do contrato[6], também garantida na Lei da Liberdade Econômica e cada vez mais presente nas discussões do dia-a-dia, busca conservar ao máximo os negócios pactuados e a autonomia privada, atribuindo aos acordos firmados uma função para com toda a sociedade, além do que já simboliza e representa para as partes.

Inspirado no princípio constitucional da função social da propriedade, também pode ser conceituado como parâmetro para imposição de limites à liberdade de contratar, em prol do bem comum. Àqueles que desejarem contratar devem observar as leis, normas e princípios gerais de direito, assim como as normas morais e éticas da sociedade e os interesses coletivos e sociais daquela cultura e local.

Portanto, a função social do Contrato se consolida como mais um motivo para evitar as rescisões contratuais e extinção dos negócios, já que estes (ainda que primem interesses privados) criam empregos, geram recursos para a economia nacional, protegem o meio ambiente, geram qualidade de vida e indiretamente influenciam em toda uma comunidade, em maior ou menor medida.

Uma perspectiva internacional

Já em âmbito internacional, as civilizações assentadas nos regramentos de Civil Law em comparação com àquelas de Common Law, possuem grandes diferenças quando se fala em positivação de teorias relacionadas a eventos inesperados.

Ao contrário do Brasil, países que aderem ao Common Law (como Inglaterra ou Estados Unidos), nem sempre trazem a imprevisibilidade de eventos na lei local, ficando a cargo dos precedentes a aplicação dos remédios disponíveis em caso de descumprimento contratual e invalidação de cláusulas penais, bem como através dos conceitos de “frustration of purpose” (ou frustração do contrato), “Hardship”, “impracticability” e “force majeure” (ou força maior).

Em síntese, estas teorias expressam a ideia de libertação ou exoneração de uma obrigação, mediante a ocorrência de um evento independente da vontade das partes, imprevisível e inevitável ou inescusável. Não só para fins de resolução, são ainda mais relevantes para rediscussão quando há desequilíbrio econômico do contrato e nos casos de compra e venda de mercadorias.

Resolução de conflitos

Tratando-se de litígios empresariais decorrente de contratos, existem outros meios adequados à resolução de conflitos, além do sistema judiciário. O maior questionamento que é feito quando se propõe que a revisão ocorra em juízo é uma indevida ou até mesmo equivocada interferência judicial nos contratos.

Como se sabe, juízes de direito não são especialistas nas matérias discutidas em cada caso e, por vezes, será imprescindível um conhecimento específico (questões de preço e outros aspectos comerciais) que o julgador carece, mas que determinados árbitros, especialistas, mediadores e conciliadores dispõem.

A mediação, conciliação e a arbitragem se consolidaram excelentes formas que buscar o equilíbrio técnico e decisório de assuntos comerciais e são essencialmente recomendadas por sua celeridade, tecnicidade e confidencialidade.

Nesse sentido, até a escolha do meio mais adequado de resolução da disputa deverá ser observado pelos contratantes, para preservar sua autonomia e oportunizar o desfecho consensual.

Considerações finais

Além de tudo que foi exposto, o estímulo a renegociação dos contratos e preocupação com os negócios já existentes, está se fazendo presente nas políticas mais recentes dos Bancos e credores. A intenção de manter a relação comercial frutífera é compartilhada por ambas as partes como bem pontuado pelo advogado Rafael Tridico faria, no artigo “Reestruturação de dívidas e a Recuperação Extrajudicial”.

Dessa forma, considerando todas estas ferramentas para a conservação das obrigações contratuais e o cenário de retomada que estamos vivenciando, entendemos que se formou um ambiente propício para a recuperação e fortalecimento das empresas, em seus mais diversos portes e segmentos.

Dúvidas? Fale com nossos advogados e receba orientações.


[1] Artigos 317, 478, 479 e 480 do Código Civil.

[2] Artigo 476 do Código Civil.

[3] Artigos 113, 187 e 422 do Código Civil.

[4] Há diferenciação doutrinária quanto a boa-fé subjetiva e a objetiva.

[5] A força obrigatória dos contratos ou o princípio da obrigatoriedade dos contratos é representada pelo brocardo latino “pacta sunt servanda” (os pactos devem ser cumpridos) decorre da necessidade de segurança nos negócios e determina que os contratos firmados e válidos, sob a autonomia da vontade de cada um, devem ser cumpridos.

[6] Artigos 421 e 2.035, parágrafo único, do Código Civil.

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