AS IMPLICAÇÕES DA EXCLUSÃO DO ICMS DA BASE DE CÁLCULO DO PIS E DA COFINS NO DIREITO PENAL TRIBUTÁRIO

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Fábio Bernardo
Advogado do Escritório Marcos Martins Advogados

A discussão sobre a inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS se arrastou no Supremo Tribunal Federal por duas décadas até que no ano passado o Tribunal pacificou a matéria em favor do contribuinte ao concluir o julgamento do Recurso Extraordinário nº 574.706/PR¹.

Em suma, entendeu a Corte Constitucional que o valor do ICMS embutido no preço do produto apenas circula pela contabilidade do contribuinte, constituindo mero ingresso de caixa de valor que não lhe pertence, pois é destinado aos cofres públicos dos Estados. Por esta razão o valor do ICMS não poderia ser considerado receita/faturamento.

A decisão, obviamente, foi comemorada por contribuintes e advogados que atuam na área do Direito Tributário e há muito defendiam essa tese.

Nesse contexto, o que esse breve artigo pretende abordar são os possíveis reflexos desse entendimento no direito penal tributário, especificamente na conduta de deixar de recolher aos cofres públicos o ICMS declarado pelo contribuinte.

Inicialmente, deve-se registrar que a lei nº 8.137/90², que define os crimes contra a ordem tributária, tipifica como delito penal em seu artigo 2º, inciso II a conduta de “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”.

A jurisprudência e a doutrina em geral denominam o crime em questão como de “apropriação indébita tributária”, assemelhando-o, essencialmente, ao delito de apropriação indébita do artigo 168 do Código Penal, que visa punir a conduta do sujeito que se apropria de coisa alheia móvel mantida em sua posse ou detenção.

O objeto material do delito de apropriação indébita, portanto, é a “coisa alheia móvel” da qual o sujeito ativo se apropria indevidamente.

Tanto o tipo penal genérico (artigo 168 do CP) quanto o tipo penal voltado ao direito tributário (artigo 2º, inciso II da Lei nº 8.137/90), exigem o dolo, que se configura com a vontade e consciência de apropriar-se da coisa móvel de outrem, não a restituindo ao seu legítimo proprietário ou desviando-a de sua finalidade.

A questão a ser analisada e respondida, portanto, é se o valor do ICMS embutido no preço das mercadorias e recebido pelo contribuinte pode ser caracterizado como “coisa alheia móvel”, o que necessariamente passa pela análise da sujeição passiva tributária e dos termos “cobrado” e “descontado” do tipo penal.

O sujeito passivo da obrigação tributária, segundo a definição do artigo 121 do Código Tributário Nacional é aquela pessoa legalmente obrigada ao pagamento do tributo.

O Código ainda divide o sujeito passivo em contribuinte (aquele que tem relação direta com o fato gerador) e responsável (quando sem revestir a qualidade de contribuinte a obrigação do pagamento decorra de lei).

Assim, no caso do ICMS, o contribuinte é o sujeito que circula as mercadorias, no caso do ISS é o prestador de serviços, no caso do IPTU é o proprietário do imóvel, e assim por diante.

A figura da responsabilidade, por sua vez, geralmente é imposta a determinada pessoa com o objetivo de facilitar a fiscalização e arrecadação dos tributos. O empregador quando desconta o imposto de renda do empregado e o recolhe aos cofres públicos se reveste da qualidade de responsável. Igualmente ostenta a qualidade de responsável o substituto tributário no ICMS, que recolhe aos cofres do fisco estadual o valor do imposto devido na operação de circulação de mercadorias de outro contribuinte. Os contribuintes, nestes casos, são o empregado e o comerciante substituído.

Feitas estas considerações, nos parece que o termo “descontado” do crime de apropriação indébita tributária se refere aos casos em que há retenção na fonte.

Há o desconto do tributo quando o responsável retém parte do pagamento devido ao contribuinte para repassá-lo ao fisco. O empregador desconta parte do pagamento do empregado para repassá-lo ao fisco federal a título de imposto de renda ou contribuição previdenciária devidos pelo empregado.

Nesses casos, quando há a retenção e o valor não é repassado não há dúvida de que o responsável tributário se apropria de coisa alheia móvel, visto que há uma relação jurídica tributária entre o contribuinte que sofre o desconto e o fisco. Quando o responsável retém parte do salário do empregado ele passa a deter a posse de um valor que pertencia ao empregado e que por determinação legal deve ser entregue ao fisco federal.

O termo “cobrado” por sua vez se refere àquelas situações em que o sujeito recebe um determinado valor de terceira pessoa e dentro desse valor está o tributo devido ao fisco.

É aí que reside a grande controvérsia sobre a possibilidade de se qualificar como crime a conduta de declarar e não pagar o ICMS, uma vez o valor do imposto é repassado ao comprador no preço do produto.

Do ponto de vista da sujeição passiva tributária, o consumidor não tem nenhuma relação jurídica com o fisco. Existem duas relações distintas, uma de direito privado, entre o comerciante e o comprador e outra de direito público, entre o comerciante e o fisco.

Quando o comerciante repassa o ônus financeiro do ICMS ao comprador, ele não cobra tributo, mas sim o preço da mercadoria, de modo que entendemos que a expressão “tributo cobrado” do tipo penal não alcança essa situação.

Não haveria, em princípio, apropriação indébita, pois há um negócio jurídico válido entre o vendedor e comprador em que este aceita pagar determinado valor pela mercadoria. Paralelamente surge uma segunda relação jurídica, entre o fisco e vendedor, que obriga esse último a pagar o tributo. O não pagamento, portanto, constituiria mero inadimplemento fiscal.

Diferente é a situação do ICMS-ST, em que há uma relação jurídica tributária que obriga o comprador (substituído) a recolher o imposto ao fisco estadual quando da revenda das mercadorias. Nesse caso, o vendedor (substituto) efetivamente cobra tributo do comprador, atuando como mero repassador dos recursos ao fisco.

No primeiro caso o comprador não tem nenhuma obrigação de pagar ICMS ao estado. No segundo caso o comprador, na qualidade contribuinte substituído, entrega o valor do imposto por ele devido ao vendedor, que tem a obrigação de repassá-lo aos cofres público.

Desta forma, a expressão “tributo cobrado”, só se aplicaria ao ICMS-ST.

Entretanto, ao decidir que o ICMS não deve integrar a base de cálculo do PIS e da COFINS, o STF pacificou o entendimento de que o ICMS próprio embutido no preço dos produtos não integra a receita do contribuinte, apenas circula por sua contabilidade, constituindo mero ingresso de caixa de valor que não lhe pertence.

Se o ICMS apenas transita pela contabilidade e não pertence ao contribuinte, claramente está configurado o delito de apropriação indébita tributária quando o imposto não é recolhido aos cofres públicos. O imposto repassado ao consumidor passa a ostentar a qualificação de “coisa alheia móvel” inerente ao delito.

Esta controvérsia foi discutida recentemente na Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do HC nº 399.109 / SC. Por maioria de votos o Tribunal entendeu pela caracterização do crime.

O Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, ao proferir seu voto-vista favorável à tese de que o inadimplemento do ICMS declarado constitui o delito de apropriação indébita tributária, utilizou como um de seus argumentos o fato do STF ter definido que o ICMS não integra a base de cálculo da COFINS e do PIS por não constituir receita da empresa.

Desta forma, a celebrada decisão do STF acabou por servir de premissa para o entendimento de que o inadimplemento do ICMS devidamente declarado pelo contribuinte configura o crime de apropriação indébita tributária, sendo desnecessários maiores comentários sobre as consequências danosas deste entendimento aos contribuintes.

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¹BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário nº 574.706/PR, Relª Min. Carmem Lúcia, DJe-223, Brasília, 29.09.2017. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 27 ago. 2018
²BRASIL, Planalto Nacional. Lei de Crimes Contra a Ordem Tributária. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8137.htm>. Acesso em: 27 ago. 2018

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