O LEGISLADO X O NEGOCIADO NA JUSTIÇA DO TRABALHO – A FORÇA DA NEGOCIAÇÃO COLETIVA FRENTE À JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS

Marina Junqueira de Freitas
Advogada do Escritório Marcos Martins Advogados

O presente artigo busca analisar a atual posição do judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior do Trabalho, no que tange a possibilidade dos direitos conferidos mediante normas coletivas se sobreporem àqueles dispostos em normas elaboradas pelo Estado.

Recentemente, o STF, em decisão proferida em sede de Recurso Extraordinário (RE 895.759), inovou ao reformar a decisão do TST e julgar como valida cláusula de acordo coletivo que excluía o pagamento das horas in itinere, uma vez que tal exclusão foi feita tendo em vista o recebimento de outros benefícios mais vantajosos financeiramente aos empregados. 

Nesse sentido, pode-se verificar uma mudança de paradigma do que vem sendo entendido pelo TST, já que esta Corte não aceita redução de direitos que se encontram disciplinados na CLT ou então na Constituição Federal, e consequentemente a negociação de direitos dos trabalhadores através de acordo.

Isso posto, o presente artigo se propõe apresentar a tese adotada pelas duas cortes no intuito de verificar os pontos positivos de cada uma e, consequentemente, se os trabalhadores poderiam se beneficiar com a sobreposição do negociado ao legislado.

Tendo em vista a decisão proferida em setembro deste ano pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, Teori Zavascki,(RE 895-759) que proveu Recurso Extraordinário para  considerar como válida cláusula de acordo coletivo que excluía o pagamento das horas in intinere, assim como pela possível reforma trabalhista a ser implantada no país, a discussão sobre o “ legislado x negociado” se mostra como algo importante.

Isso porque, tal questão traz à tona a possibilidade da flexibilização dos direitos trabalhistas, ponto que deve ser observado com bastante cautela, uma vez que as garantias trabalhistas, para serem retiradas ou suprimidas necessitam de intensa discussão assim como aceitação da sociedade e dos setores políticos.

Nesse sentido, para a realização desta análise o presente artigo buscou examinar a posição atual do STF que através do julgamento de Recurso Extraordinário que ao ser provido reformou a decisão do Tribunal Superior do Trabalho.

O entendimento do STF foi no sentido de possibilitar a livre negociação dos entes sindicais e consequentemente uma maior efetivação dos anseios das categorias profissionais. Já o TST entende que as negociações não podem dispor de direitos trabalhistas garantidos por lei.

Posto isso, configura-se o embate entre o negociado x o legislado, devendo ser observado o caso concreto e a busca pela melhor condição para o trabalhador.

Na justiça do trabalho, a capacidade dos sindicatos em produzirem normas é realizada através de acordos e convenções coletivas. Tal atividade coletiva se encontra no campo do que pode ser “negociado”, ao lado das normas jurídicas estatais, que, segundo os doutrinadores compõem o chamado “legislado”.

O negociado é composto por Acordos Coletivos de Trabalho ou Convenções Coletivas de Trabalho. Os acordos são firmados entre os sindicatos das categorias com uma ou mais empresas e serão aplicados apenas aos empregados de determinada empresa que foi signatária do acordo, já as convenções são estabelecidas entre os sindicatos de trabalhadores e o sindicato patronal, sendo aplicado a todos os contratos de trabalho firmados entre os trabalhadores e as empresas.

Já o legislado é composto principalmente por aqueles direitos trabalhistas previstos nos arts. 7º ao 11 da Constituição Federal de 1988 (CF/88) e na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Há divergência na doutrina e na jurisprudência acerca dos benefícios decorrentes da livre negociação entre os agentes sociais. Aqueles que enxergam tais benefícios buscam a máxima expressão da liberdade de negociação entre os agentes sociais, devendo essas prevalecerem às leis instituídas pelo Estado.

Por outro lado, há aqueles que vêm na supressão das normas legais, um prejuízo para as garantias trabalhistas, advogando pelo legislado.

Tendo em vista essa dualidade, Mauricio Godinho Delgado, Ministro do Tribunal Superior do Trabalho e renomado doutrinador brasileiro em sua obra Introdução ao Direito do Trabalho busca a harmonização da criatividade jurídica com as normas criadas pelo poder legislativo, criando assim o princípio da adequação setorial negociada, que dispõe sobre as possibilidades e limites jurídicos da negociação coletiva.

Trata-se da inter-relação entre o direito coletivo e o direito individual, quando de busca uma harmonização entre as normas criadas pela coletividade trabalhista e aquelas criadas pelo legislativo.

Pelo princípio da adequação setorial negociada:

as normas autônomas juscoletivas construídas para incidir sobre certa comunidade econômico-profissional podem prevalecer sobre o padrão geral heterônomo justrabalhista desde que respeitados certos critérios objetivamente fixados. São dois esses critérios autorizativos: a) quando as normas autônomas juscoletivas implementam um padrão setorial de direitos superior ao padrão geral oriundo da legislação heterônoma aplicável; b) quando as normas autônomas juscoletivas transacionam setorialmente parcelas justrabalhistas de indisponibilidade apenas relativa (e não de indisponibilidade absoluta). (GODINHO, 1999, p. 162-163)[1]

Quando o primeiro critério é aplicado significa que as normas coletivas elevaram o patamar setorial dos direitos trabalhistas, e nesse momento elas serão aplicadas em detrimento da norma legislada. Tal critério passa a ter correspondência com o principio da norma mais favorável, uma vez que é estabelecido que aquelas normas coletivas que forem mais benéficas ao padrão estabelecido pela norma legal é que serão aplicadas.

Já o segundo critério, guarda relação com a teoria da flexibilização, já que as normas coletivas poderão prevalecer sobre as leis quando se tratar de direitos de disponibilidade relativa, ou seja, aqueles direitos nos quais há uma margem de negociação.

Atualmente há uma grande discussão a cerca dos direitos trabalhistas, tendo em vista o novo cenário politico do país. Em meio a essa polêmica, o Ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu que um acordo coletivo firmado entre sindicato e empresa deve prevalecer sobre uma regra da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

O caso concreto discutido no RE 895-759 trata-se de uma ação entre a Usina Central Olho D’agua S/A e os Sindicato de Trabalhadores Rurais de seis municípios que negociaram a supressão dos pagamentos de horas in itinere.

Tal direito deve ser concedido pela empresa empregadora quando não há transporte público regular disponível ao empregador para a realização do trajeto casa- trabalho.  Esta verba está prevista no artigo 58, § 2o da CLT, que dispõe:

o tempo despendido pelo empregado até o local de trabalho e para o seu retorno, por qualquer meio de transporte, não será computado na jornada de trabalho, salvo quando, tratando-se de local de difícil acesso ou não servido por transporte público, o empregador fornecer a condução.( grifo nosso)

O que restou acordado entre a empresa e o sindicato foi que em troca do pagamento da referida verba, os trabalhadores rurais receberiam cesta básica durante a entressafra, seguro de vida e acidentes além do pagamento do abono anual aos trabalhadores com ganho mensal superior a dois salários-mínimos, pagamento do salário-família além do limite legal, fornecimento de repositor energético e adoção de tabela progressiva de produção além daquela prevista na Convenção Coletiva.

 Tais medidas foram tomadas porque o cálculo das horas in itinere se tornava bastante dificultoso de ser realizado uma vez que alguns dos trabalhadores moram a 20 minutos do serviço e outros a 4 horas.

Na decisão do STF sobre tal temática, publicada em (13/9), o Ministro do Supremo reformou acordão proferido pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) que havia desconsiderado o acordo coletivo, uma vez que a corte trabalhista entendeu que os termos dispostos em tal acordo iriam de encontro com as regras previstas na legislação trabalhista, assim com atentavam contra os preceitos constitucionais que conferem proteção aos direitos trabalhistas mínimos.

Ademais, o entendimento do TST é de que os direitos garantidos através de negociação coletiva não podem abranger direitos já assegurados por lei. Nesse sentido, uma vez que o direito que foi transacionado pelo acordo coletivo em questão foi o das horas in itinere, direito esse já consolidado pela CLT em seu artigo 58º, a supressão de seu pagamento não seria passível de transação, justamente por estar legalmente previsto.

Importante colocar que o TST nunca admitiu supressão integral das horas in itinere, somente autorizando a negociação coletiva sobre 50% da verba.

O presidente da Anamatra (Associação Nacional de Juízes do Trabalho) Germano Siqueira acredita que, em regra, o negociado não deve prevalecer sobre o legislado, somente aceitando tal hipótese quando tal medida for utilizada para avançar em termos de direitos trabalhistas.

Segundo ele, por se tratar de uma decisão monocrática, a Justiça do Trabalho ainda não é obrigada a seguir a jurisprudência do Supremo. A não ser que o caso seja decidido em repercussão geral, após o trânsito em julgado, e virar súmula vinculante.

Já aqueles que defendem a possibilidade da sobreposição do negociado sobre o legislado nesse caso, encontram nas vantagens oferecidas em troca da supressão das horas in itinere, a justificativa para diminuição de um direito concedido pela CLT.

Não se constata, por outro lado, que o acordo coletivo em questão tenha extrapolado os limites da razoabilidade, uma vez que, embora tenha limitado direito legalmente previsto, concedeu outras vantagens em seu lugar, por meio de manifestação de vontade válida da entidade sindical. (STF – julgamento do RE 895.759, voto do ministro Teori Zavascki)

Ademais, os defensores desta tese alegam que decisões como essa levarão a um consequente amadurecimento dos entes sindicais.

Esse se mostra um argumento bastante forte para o direito do trabalho, uma vez que ao fortalecer a negociação coletiva os trabalhadores pesarão a ter uma maior consciência quando da eleição de seus representantes, já que o que for decidido através das negociações coletivas passará a ter mais impacto em suas vidas, e uma maior relação com seus questionamentos laborais diários.

Ademais, o papel desempenhado pelo STF é mesmo o de reconhecer que determinadas verbas podem ser transacionadas, no entanto, a análise das vantagens provenientes da negociação fica a cargo do sindicato. Por isso a necessidade imperiosa dos trabalhadores em desenvolverem maturidade e discernimento para escolherem bem seus representantes.

Após a análise do alcance da negociação coletiva no panorama jurídico trabalhista atual e da observância do princípio da adequação setorial negociada, acredito que a questão do legislado sobre o negociado deve ser observada frente ao caso concreto, quando deverá ser levado em consideração o direito discutido e a possibilidade deste ser transacionado.

Em se tratando de uma situação específica, na qual aquele direito que está sujeito a supressão não apresente vantagens concretas e práticas no dia a dia do trabalhador, um outro conjunto de medidas ou direitos previstos através de negociação coletiva poderão prevalecer.

Tal sobreposição do negociado sobre o legislado deve ser acompanhada de perto pelos sindicatos, assim como pelos próprios trabalhadores, que, nesse cenário, passariam a ter um papel de controle e fiscalização, indispensável para que o resultado dessa harmonização de normas seja sempre mais benéfica ao trabalhador, frente a uma situação concreta.

Posto isso, a recente decisão do STF abre margem para essa discussão, se mostrando positiva no sentido de que, quando aqueles direitos garantidos pela Constituição não se mostrarem vantajosos para o empregado frente a uma determinada situação, estes poderão ser suprimidos, mas somente naqueles casos em que existam outras garantias mais urgentes e que irão impactar a vida dos trabalhadores de uma forma mais efetiva positivamente, tendo sempre em vista uma melhoria na situação laboral dos indivíduos.

 


[1] DELGADO, Mauricio Godinho. Introdução ao direito do trabalho: relações de trabalho e relação de emprego. 2. ed. rev. atual. São Paulo: LTr, 1999.

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